rua do Crucifixo, mil oitocentos e tal

[26Jan09]

De uma occasião, cavaqueando o Innocencio e o Meréllo, na loja do livreiro Rodrigues, da rua do Crucifixo, farejaram um livro de valia; cuidando, qualquer dos dois, que, o outro, não houvesse dado por elle.

Principiaram então, como que ao desafio, em espertezas, procurando mutuamente afastar o competidor do logar da maravilha.

Já um chamava o outro para a porta, e lhe narrava não sei que historia em grandes ares de confidencia; — já o outro consultava o relogio e lhe dizia a hora, adiantando-a, ao passo que lhe perguntava qual fosse a sua hora de jantar… Nem o Meréllo nem o Innocencio arredavam um passo da baiuca do livreiro, recinto encantado da ambicionada joia.

N’isto, não se atrevendo um nem o outro a desampararem a caça, nem, tão pouco, a separarem-se, sairam juntos.

Innocencio, morava n’esse tempo, ao Rato, na rua de S. Filippe Nery; o Meréllo, como que deleitando-se com a sua conversação, foi indo até lá.

Uma vez chegados, disse-lhe o auctor do Diccionario Bibliographico:

— Você onde vae?

O Meréllo, titubiando, denunciou, porventura, na sua hesitação, o designio que guardava em seu animo? Chi lo sá?!

Respondeu conforme poude:

— Eu agora… estou capaz de ir… tenho por força de ir agora…

— Para cima?

— Não; ali, para aquele lado…

Innocencio fixava-o no branco dos olhos.

— A Santa Isabel!!! acrescentou Meréllo, que, com o ganhar tempo, cobrára animo, e revigorára o seu espirito. Vou a Santa Isabel, e, adeus, que não me posso demorar!!!

— Então, adeus! disse-lhe o Innocencio. E obrigado pela companhia.

Meréllo, em passinho de pulgam cortou para a direita, pelo largo do Rato fóra, e sumiu-se detraz da esquina.

Dois olhos, porém, o acompanhavam, vigiando-o, sem fallarmos nos da providencia, que, talvez, n’aquella hora, o não seguissem com tanto disvélo…

Eram os olhos do Innocencio, que, logo depois de fechar a porta da rua, de novo a abrira, de mansinho, encostando-a habilmente, de maneira que podesse vêr sem ser visto.

Espreitando o Meréllo no rapido ápice de dobrar a esquina, ahi foi logo, de corrida, de voada, o Innocencio, encostar-se, meio escondido, na diligencia de observar, se, effectivamente, o Meréllo seguia pela rua do Sól, a fim de cortar depois á esquerda para Santa Isabel.

Mas, — oh! confirmação de suspeita! — o Meréllo virou pela rua de S. Bento, e, d’este modo, revelou a engenhosa estrategia com que estivera a ponto de levar de vencida o seu competidor.

Innocencio Francisco da Silva não pensou uma, não pensou duas, nem tres vezes, e, voltando a metter-se na rua da Escóla Polytechnica, desceu pressuroso, aos encontrões a quem ia e vinha; elle, para o passeio; elle, para o meio da rua; zás, pás; de salto, pulo, e gangão; respirando apenas; apertando o figado, abalado pela furia da correria; até quem catrapuz, cahia de chofre na loja do livreiro, onde, em caso immediato, se embrulhava com um vulto, que, tambem de repellão e de tombo subito, penetrava ali…

Era o Meréllo!

O Meréllo, que, suspeitoso e inquieto pelas perguntas do Innocencio, correra ao livreiro, e alcançára, pela rua de S. Bento, Calhariz e Chiado, chegar ao Pote das Almas ao mesmo tempo que o seu rival illustre, por S. Pedro de Alcantara e S. Roque: em passo vertiginoso, de  bibliophilos, ambos elles; — o incomparavel passo, que fez sempre a inveja do Bargossi! o andarilho Bargossi!

Com razão se diz serem mudas as dôres supremas. No meio do reboliço que houve n’aquella loja, quando os dois alfarrabistas se atropellaram ao entrar ali, qual d’elles com maior ancia, foi o Meréllo o primeiro a conseguir deitar a mão ao livro. O Innocencio, que tinha uma tremenda lingua de palmo e meio, terror do proximo, metteu-a no bucho, e, engulindo em secco, viu o outro arrecadar o livro no bolso do peito, abotoar-se á mesm’alma, pagar o livro ao Rodrigues, e sair, ficando quêdo e mudo, como se, aquelle caso formidando, estivesse a ponto de entupir-lhe por uma vez a falla.

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[reprodução integral da primeira das Mil e Uma Histórias, de Julio Cesar Machado, Lisboa: Empreza Litteraria, 1888, pp. 7-10 — para uma imagem maior ou mais legível do cartaz do Bargossi, o melhor é ir directamente à fonte]

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