Há quase 100 anos, a Bertrand mudava de dono e de prateleiras. Foi (salvo erro) na Ilustração Portugueza n.º 312, de 12 de Fevereiro de 1912, que o facto mereceu destaque, com fotografias de Benoliel e as seguintes legendas:

A nova instalação da Livraria Bertrand – A mais antiga livraria de Lisboa, a Bertrand, onde o marquez de Pombal instalára o velho livreiro francez, acaba de passar por uma grande transformação, sendo hoje propriedade da firma Aillaud, Bastos & Alves, os conhecidos editores de Paris, Lisboa e Rio de Janeiro.

A nova e artística instalação da antiga livraria Bertrand, em que actualmente estão associadas as poderosas casas editoras do Rio de Janeiro e de Paris, Aillaud e Francisco Alves, que projectam promover em grande escala a infusão das duas grandes literaturas portugueza e brazileira nos mercados de livros de Portugal e do Brazil.

Assim de repente, lembram-me as estantes centrais da grande Barateira (à Trindade), a escola de muitos dos actuais alfarrabistas de Lisboa.

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[10Jun09]

Circulado:

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Não-Circulado:

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(com um abraço ao Carlos Barroco)

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De uma occasião, cavaqueando o Innocencio e o Meréllo, na loja do livreiro Rodrigues, da rua do Crucifixo, farejaram um livro de valia; cuidando, qualquer dos dois, que, o outro, não houvesse dado por elle.

Principiaram então, como que ao desafio, em espertezas, procurando mutuamente afastar o competidor do logar da maravilha.

Já um chamava o outro para a porta, e lhe narrava não sei que historia em grandes ares de confidencia; — já o outro consultava o relogio e lhe dizia a hora, adiantando-a, ao passo que lhe perguntava qual fosse a sua hora de jantar… Nem o Meréllo nem o Innocencio arredavam um passo da baiuca do livreiro, recinto encantado da ambicionada joia.

N’isto, não se atrevendo um nem o outro a desampararem a caça, nem, tão pouco, a separarem-se, sairam juntos.

Innocencio, morava n’esse tempo, ao Rato, na rua de S. Filippe Nery; o Meréllo, como que deleitando-se com a sua conversação, foi indo até lá.

Uma vez chegados, disse-lhe o auctor do Diccionario Bibliographico:

— Você onde vae?

O Meréllo, titubiando, denunciou, porventura, na sua hesitação, o designio que guardava em seu animo? Chi lo sá?!

Respondeu conforme poude:

— Eu agora… estou capaz de ir… tenho por força de ir agora…

— Para cima?

— Não; ali, para aquele lado…

Innocencio fixava-o no branco dos olhos.

— A Santa Isabel!!! acrescentou Meréllo, que, com o ganhar tempo, cobrára animo, e revigorára o seu espirito. Vou a Santa Isabel, e, adeus, que não me posso demorar!!!

— Então, adeus! disse-lhe o Innocencio. E obrigado pela companhia.

Meréllo, em passinho de pulgam cortou para a direita, pelo largo do Rato fóra, e sumiu-se detraz da esquina.

Dois olhos, porém, o acompanhavam, vigiando-o, sem fallarmos nos da providencia, que, talvez, n’aquella hora, o não seguissem com tanto disvélo…

Eram os olhos do Innocencio, que, logo depois de fechar a porta da rua, de novo a abrira, de mansinho, encostando-a habilmente, de maneira que podesse vêr sem ser visto.

Espreitando o Meréllo no rapido ápice de dobrar a esquina, ahi foi logo, de corrida, de voada, o Innocencio, encostar-se, meio escondido, na diligencia de observar, se, effectivamente, o Meréllo seguia pela rua do Sól, a fim de cortar depois á esquerda para Santa Isabel.

Mas, — oh! confirmação de suspeita! — o Meréllo virou pela rua de S. Bento, e, d’este modo, revelou a engenhosa estrategia com que estivera a ponto de levar de vencida o seu competidor.

Innocencio Francisco da Silva não pensou uma, não pensou duas, nem tres vezes, e, voltando a metter-se na rua da Escóla Polytechnica, desceu pressuroso, aos encontrões a quem ia e vinha; elle, para o passeio; elle, para o meio da rua; zás, pás; de salto, pulo, e gangão; respirando apenas; apertando o figado, abalado pela furia da correria; até quem catrapuz, cahia de chofre na loja do livreiro, onde, em caso immediato, se embrulhava com um vulto, que, tambem de repellão e de tombo subito, penetrava ali…

Era o Meréllo!

O Meréllo, que, suspeitoso e inquieto pelas perguntas do Innocencio, correra ao livreiro, e alcançára, pela rua de S. Bento, Calhariz e Chiado, chegar ao Pote das Almas ao mesmo tempo que o seu rival illustre, por S. Pedro de Alcantara e S. Roque: em passo vertiginoso, de  bibliophilos, ambos elles; — o incomparavel passo, que fez sempre a inveja do Bargossi! o andarilho Bargossi!

Com razão se diz serem mudas as dôres supremas. No meio do reboliço que houve n’aquella loja, quando os dois alfarrabistas se atropellaram ao entrar ali, qual d’elles com maior ancia, foi o Meréllo o primeiro a conseguir deitar a mão ao livro. O Innocencio, que tinha uma tremenda lingua de palmo e meio, terror do proximo, metteu-a no bucho, e, engulindo em secco, viu o outro arrecadar o livro no bolso do peito, abotoar-se á mesm’alma, pagar o livro ao Rodrigues, e sair, ficando quêdo e mudo, como se, aquelle caso formidando, estivesse a ponto de entupir-lhe por uma vez a falla.

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[reprodução integral da primeira das Mil e Uma Histórias, de Julio Cesar Machado, Lisboa: Empreza Litteraria, 1888, pp. 7-10 — para uma imagem maior ou mais legível do cartaz do Bargossi, o melhor é ir directamente à fonte]

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O ALFARRABISTA MANUEL DOS SANTOS, por João Paulo Freire (Mário):

Aquêle Manuel dos Santos que acompanhámos ao cemitério, merece bem duas palavras de necrologia. Êle foi o mais completo expoente do que é e do que pode ser uma vocação, porque, de ofício bem diferente, como seu irmão José, ambos se lançaram à vida de livreiros-alfarrabistas, ali em baixo ao fundo dos Paulistas, na mesma acanhada baiúca onde hoje pontifica José dos Santos.

Ali começou para os dois o comércio do livro raro e do livro usado. Do livro que já se não quere e do livro que ansiosamente se procura. Um dia o Manuel separou-se do irmão e veio para a esquina da Bica, já livreiro lançado, e uma que outra vez livreiro-editor, em assuntos camilianos. Foi o Manuel dos Santos que me editou, em 1917, A Campanha da Lápide, como cinco anos depois editava, a Alberto Pimentel, O Torturado de Seide.

Como livreiro, Manuel dos Santos foi dos mais arrojados do seu tempo. Pode afirmar-se que fêz o que se chama uma revolução no mercado do livro antigo. E sem ter fundos conhecimentos, quási sem base própria, era tal a sua vocação e a sua fôrça de vontade, que muitas vezes supria pela audácia inteligente a sua impreparação.

Deixa uma vasta obra de catalogação bibliográfica, obra importante, de admirável documentação, por cujas páginas passa o que temos de melhor na bibliografia portuguesa.

Como livreiro camilista, Manuel dos Santos, não só criou, a seis anos do centenário, o gôsto e a procura pelas raridades de Camilo, como, tornando-se o seu comentador bibliográfico, nos deixou a melhor, a mais completa e a mais interessante de tôdas as documentações que no género têmos sobre Camilo. São dois volumes e um tômo, já hoje raros, estimados e valorizados no mercado livreiro.

Na sua pequena loja, hoje muito desfalcada, havia, ainda não há muito, verdadeiras preciosidades que êle vendeu, principalmente para a Inglaterra e para o Brasil, e, pode afirmar-se que, tirando seu irmão José, tinha, como livreiro, a mais preciosa de tôdas as camilianas que eu conheço.

Activo, enérgico, trabalhador, morre na fôrça da vida, um rapaz ainda, quando precisamente os seus conhecimentos adquiridos o começavam a impôr como um valor na difícil e complicada ciência de conhecer os livros.

De bem conhecer, de bem os comprar, e de melhor os vender…

Tinha admiráveis qualidades como cidadão, e era, no meio livresco lisboeta, uma figura interessante que se impunha, pela sua lealdade, pela sua bondade, e para nós jornalistas pela amizade que a quási todos dispensava, amizade cheia de franqueza, amizade de quem percebia, por um fino espírito de subconsciência, que, jornalistas e livreiros, são duas classes afins.

Pobre Manuel dos Santos!

Ainda há meia dúzia de dias êle me dizia, brincalhão e alegre, referindo-se ao seu leilão marcado para ontem:

– Vê lá, não faltes. Olha que tens lá pechinchas!

Não faltes… Sim. Eu não faltei. Êle coitado é que não presidiu à venda dessas pechinchas.

Veio a morte [8 de Janeiro de 1922] antes de tempo e fechou-se a última folha dêste safado livro da vida que todos nós vamos agora lendo, parece que em 2.ª mão…

Que descanse em paz, o pobre Manuel dos Santos.

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«O Alfarrabista Manuel dos Santos» in João Paulo Freire (Mário), TÔRRE DO TOMBO… Crónicas Dispersas, Lisboa: Edição do Autor, 1937.

AGOSTO É UM MÊS DIFÍCIL

agosto é um mês difícil

árido

por isso escrevo: «aqui

agosto magoa os músculos.

é um tempo de fuga

nos mapas novos do mar. por vezes

esperamos uma mulher um peixe

obceca-nos um peixe é frio e liso

respira intensamente com o barco

onde foi recolhido».

agosto é uma dor aguda

no pescoço

por isso acrescento: «o Porto sufoca

sob a caliça das paredes o homem pensa

uma viagem diferente. é tempo de ócio

de ódio

no granito do chão um desespero

mudo e ácido».

agosto sabe a bronze tem a

consistência do bronze

por isso escrevo: «aqui

abrimos a crosta do silêncio: é como

morder um limão».

ANTÓNIO MANUEL LOPES DIAS

[Jaime Lúcio]

Cochofel

[15Abr08]

Caneças, 1951

[26Fev08]

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pitecos

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